quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Cinzenta.

"dia cinzento
assim me levanto
assim me sento"
(Paulo Leminski)

As canecas e xícaras sujas espalhadas denunciavam a ansiedade da madrugada anterior. Finalmente conseguira dormir, depois das seis da manhã, depois de tanto chá e de tantas músicas repetidas.
Queria ter sonhos coloridos, qualquer um. Nada e tudo era suficiente ao mesmo tempo, o enigma do tédio. Com dezenove anos de idade, sentia a crise dos cinqüenta na alma.
Acorda sem sono perto das nove horas e decide passear na chuva. É domingo, não teria ninguém nas ruas a essa hora mesmo. Então escova os dentes, lava o rosto e toma o café morno da tarde anterior. Veste o vestido com o laço cor-de-rosa que nunca havia usado (achava-o infantil e ingênuo demais) e desce as escadas com uma pressa sem motivos aparentes.
Caminha longamente até a praça, o ritmo da chuva é agora o dos seus pensamentos. Vida, tédio, vida, vida, quero, onde, tédio. Decide sentar no banquinho desbotado da praça, e percebe a única pessoa que andava pelas redondezas: um velhinho carregando um saco de pão. Este passa ao seu lado com um guarda-chuva preto enorme e caminha em direção a uma das casinhas antigas da rua.
Como ele conseguiu chegar a uma idade tão avançada? A vida era tão pouco para Elisa. Não sabia se um dia pularia do seu apartamento por sentir dor ou tédio. Não suportava aquele ciclo de dor, intervalo para breve alegria, tédio, dor novamente, etc.
Quando percebeu que sua roupa estava tão ensopada que chegava a grudar no corpo, resolveu comer alguma coisa na padaria em frente. Sentir o cheirinho quente dos pães e doces seria bom. Aproveitaria a tranqüilidade daquele dia chuvoso e deserto.
Tomou o café com leite e comeu o sonho devagar, quase esquecendo da materialidade deles. Envolvia-se em si mesma com tamanha facilidade, isso a prendia em seu próprio mundo de tal forma que era difícil ter uma vida social.
Ela era vasta, densa, calma, perplexa, imperfeita, incompleta, sem. Não sei se a vida dessa moça de cabelos lisos e olhos pequenos, usando um vestido de laço cor-de-rosa vai mudar. Eu sei que, terminada a refeição, ela voltou para casa com o céu cinza e dormiu.

Um comentário:

Thiago Fonsêca disse...

Adoro esses vestígios cotidianos, essas marcas denunciadoras do criminoso involuntário: o tempo. Também gosto muito dos teus rastros
de escrita - o mofo, a poeira.
É como eu falei, gosto da tua escrita, de sensações intensas, cheia de atenção e sensibilidade. Destaco neste texto a atmosfera estável, mas envolvente, do início ao fim que me prende e me faz aguardar cada passo e pensamento da garota. Parece que o clímax está espalhado por todo o texto; acho que o que há de importante pra se perceber e relevar na garota é tudo aquilo que está sendo narrado desde o começo: seus pensamentos, seus sentimentos, seus passos, de alguma forma que não há um foco de atenção para a criação de um grande momento. O grande momento é aquele ali, presente, que se volta para o passado e pensa no futuro - tudo ao mesmo tempo. Foi assim que li teu belo texto.

Vida longa os bons blogs! o/